segunda-feira, novembro 03, 2008

Primeiro de Agosto

Era o primeiro dia de Agosto - às vezes sabe bem fazer coisas destas - fui buscar o meu mano à praia de Carcavelos, era o último dia do seu emprego de verão, trabalhou um mês a levar putos à praia todos os dias, eu próprio já trabalhara nisso quando tinha a idade dele. Tinha tudo planeado ao máximo detalhe, os bilhetes, sandes de ovo com bacon na mochila, muita música para as horas de viagem que se apresentavam à nossa frente, tenda, saco-cama, o peugeot dos avós com a pressão dos pneus por confirmar, erva para o concerto e acima de tudo muita vontade de estrada e canções. O meu irmão estava a atrasar-se, mandei uma mensagem ao Tiago, estava pronto, ainda tinha que passar pelo BPN onde trabalha o Cardoso, o Cardoso é um amigo do Henrique, que é o meu mano, e que estava atrasado. O concerto começava às sete e meia, era o primeiro daquele dia de festival e pelas minhas contas íamos demorar no mínimo quatro horas e meia a chegar ao Minho profundo, o tempo estava a escassear, era preciso agir. Pus o carro a trabalhar enquanto escrevia uma mensagem ao Henrique para ir ter ao semáforo antes da rotunda por onde se entra para Carcavelos, arranquei e para minha felicidade ele já lá estava quando cheguei, virei para a auto-estrada e voltámos para Lisboa. Apanhámos o Tiago em casa dele e arrancámos mais depressa do que devíamos. Chegámos ao BPN da António Augusto Aguiar e lá estava o Cardoso à nossa espera, no meio do anonimato da multidão que esperava que o semáforo os deixasse atravessar a rua. Entrou num salto para o carro, engatei a primeira e a viagem começou, imediatamente ali. O que se seguiu foi uma sucessão de quilómetros, canções, carros, estações de serviço, sandes de ovo e bacon, sempre com a ansiedade a subir proporcionalmente ao velocímetro. Vila Franca, Santarém, Fátima, Leiria, Coimbra, Aveiro, Porto, o rio Douro debaixo da ponte, debaixo dos pneus, parte do peugeot, e lá dentro nós os quatro à espera de chegar, tínhamos duas horas para o concerto, era suficiente mas não podíamos facilitar. Os outros podem achar estúpido tantos quilómetros para um primeiro concerto de um dia de festival, aquele que quase ninguém nunca vê, mas para nós era algo que tinha que ser feito, porque significava muito mais - significava os nossos corpos bem vivos a moverem-se a cento e cinquenta quilómetros por hora pelo país fora, as vidas quotidianas a serem ultrapassadas pela vontade de viver um dia diferente, improvável, fintar o destino com muito estilo. E foi também com muito estilo que nos enganámos no caminho, ou melhor que me enganei no caminho, e que fiz inversão de marcha na primeira saída, e que voltei a encarrilar na estrada do nosso caminho, Viana, Caminha, Cerveira e mesmo antes de chegar a Valença, já com as paisagens da Galiza debaixo do olhar, junto ao Stop, onde servem uns panados com arroz de feijão do além, virámos à direita para Paredes de Coura. Neste momento faltava meia hora para começar o concerto, a ansiedade transformava-se em excitação, se esta malta soubesse de onde vínhamos encostava os carros e deixava-nos passar, o homem do tractor que ia à nossa frente nunca mais chegava a casa, e quando chegou ainda apanhámos um carro espanhol a andar a cinquenta à hora, tudo parecia perdido, tudo parecia demasiado estúpido, a tal finta ao destino. Estacionámos de qualquer maneira junto ao recinto, deixámos tudo no carro menos o essencial, que não vou especificar porque estávamos com pressa, ainda hoje não sei como me lembrei de trancar o carro. Corremos quatro malucos pela rampa abaixo, trocámos os bilhetes por pulseiras, entrámos no recinto, ouviam-se acordes ao longe, e uma voz distorcida, e depois só me lembro de chegar ao anfiteatro natural, ainda com resquícios de verde no meio do castanho rústico, o sol imediatamente acima do palco, o deus sol, e a voz rouca a cantar «Despite what you've been told, I once had a soul, left somewhere behind, a former friend of mine», e um sorriso carregado e estúpido nos meus lábios era a prova de que tudo tinha feito sentido, agora era aproveitar aquela noite, pois no dia seguinte a viagem seria ainda maior.