domingo, fevereiro 15, 2009

os lábios

A orquestra tocava demasiado alto para os seus ouvidos, não ouvia uma única palavra do que ela dizia. Tentava ler-lhe os lábios, mas logo se fascinava por eles, logo se perdia neles e tudo esquecia, dentro de tudo esquecia-se mesmo que os estava a tentar ler, e dava por ele e já nem sabia o que ali estava a fazer, quem era? seu nome? sua vontade? A sua existência cingia-se a estar ali a tentar ouvir e a esquecer-se que tentava ouvir, só isto. Era preciso acontecer alguma coisa e nada acontecia, como num filme em que a cena já perdeu o seu fulgor e precisa de mudar, e a gente quer ver outra coisa, a continuação daquela inexistência. De repente ouve-se um estrondo ao fundo da sala, a orquestra cessa, as pessoas que dançavam - que ainda nem tinha reparado nelas - ficam imóveis ao som do silêncio, os lábios também páram e estremecem levemente, deixa de ter um motivo para os olhar, mas continua. As pessoas estremunhadas começam a fugir do que não sabem, homens e mulheres desatam em correrias a ir buscar carteiras e casacos. Os músicos que ainda agora tocavam - a natureza do instante - correm também eles numa súbtil e bela cadência rítmica, afinal de contas são músicos, todos diferentes mas tão iguais. Distraído com improbabilidades, não se dá conta da recente ausência dela, que fugira como os outros do que não sabe. Procura-a mas a confusão é tanta e tão densa que só vê lábios desconhecidos a serem levados para a rua por suas pernas correntes. Começa também a andar em direcção à saída, muito devagar, como se carregasse nos ombros a mais bela imagem da virgem numa solene procissão. As pessoas que se atropelam dão-lhe encontrões na passada, os ombros já lhe doem de carregar a imagem que não há. Depois de andar uns minutos percebe que ficou sozinho, a multidão desaparecera, a música cessara, os lábios partiram. Olha em volta e vê o salão arruinado, vidros por toda a parte partidos ao mais ínfimo pedaço, sapatos que ficaram para trás, mesas viradas do avesso, restos de comida pelo chão e a imagem da cortina vermelha que abria e fechava o palco prostrada no chão. Acende um cigarro de resignação pela vida, mas bestialmente inconformado com o instante. Enquanto dá um bafo julga ver a cortina a mexer-se. Deita o fumo fora e julga ver um tronco anónimo a levantar-se debaixo da mesma. Apaga o cigarro e julga vê-la sair de lá. Os lábios, julga ele. E num gesto sincero deixa cair a imagem da virgem que se estilhaça pelo chão.

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